Houve uma época em que a história de uma garçonete de 21 anos que matou a facadas um dirigente do Partido Comunista que tentava forçá-la a fazer sexo com ele não teria ido além das regiões rurais da província de Hubei, onde aconteceu o incidente.
Mas, em lugar disso, a detenção da garçonete no mês passado, sob a acusação de homicídio culposo, deflagrou uma onda de indignação na internet que transformou a acusada em heroína nacional e repercutiu até mesmo na capital, onde os censores ordenaram a retirada dos comentários inflamatórios. As autoridades locais em Hubei restringiram a cobertura televisiva do caso e tentaram impedir viagens à pequena cidade onde o ataque aconteceu.
Na terça-feira, um tribunal de Hubei concedeu à acusada, Deng Yujiao, uma vitória inesperadamente rápida, decidindo que ela havia agido em legítima defesa e decretando sua libertação sem que esteja sujeita a processo.
O caso de Deng é apenas o mais recente e comentado de diversos episódios nos quais a internet abriu a porta à expressão de insatisfação pela massa dos cidadãos diante da conduta de alguns de seus governantes, o que demonstra o potencial da rede como catalisadora de mudanças sociais.
As reações do governo despertaram questões quanto à capacidade das autoridades para controlar o que definem como "incidentes online de massa". Os 300 milhões de usuários de internet que existem na China, de acordo com estimativas, estão despertando para a ideia de que, mesmo em um país autoritário como o deles, é possível confrontar as autoridades.
"Trata-se de conscientizar mais o público sobre as ideias democráticas - transparência, prestação de contas, o direito de participação dos cidadãos, a ideia de que o governo deve servir o povo", disse Xiao Qiang, professor de jornalismo na Universidade da Califórnia em Berkeley e estudioso das atividades de internet na China. "Os internautas que agora compartilham desses valores mais democráticos estão aproveitando esses casos, e avançando passo a passo com eles".
A China continua a exercer controle abrangente e sofisticado sobre a internet, empregando milhares de pessoas para monitorar o tráfego da rede em busca de conteúdo proibido e utilizando software que localiza palavras chave indicativas de subversão. Mas o sistema não é infalível, e os usuários da internet muitas vezes encontram maneiras de contornar a censura.
Desde o final do ano passado, uma tempestade de protestos online vem acompanhando o caso de um funcionário do governo na província de Guangdong que agrediu uma jovem e se gabou em um vídeo de que estava acima de qualquer punição. Outro caso a despertar indignação foi o de um funcionário da prefeitura de Nanjing avistado usando um relógio Vacheron Constantin, que custa US$ 14,5 mil, e fumando cigarros vendidos a US$ 22 por maço, provas de um estilo de vida que fica bem além do que o salário dele poderia propiciar.
No começo deste ano, protestos online expuseram o acobertamento, por autoridades penitenciárias, da morte de um detento espancado pelos guardas. Agora, a indignação se dirige a funcionários do governo da província de Yunnan que decidiram combater um surto de raiva por meio da ação de "equipes de extermínio" que, de acordo com reportagens, mataram 50 mil cachorros a pauladas.
Nem todas as cruzadas têm por motivo o espírito cívico. Em muitos dos casos, os funcionários acusados de delitos foram alvo de perseguições virtuais que incluíram a divulgação de seus nomes e outros detalhes pessoais. O apelido dado às multidões de manifestantes que surgem para protestar depois de alertados via internet, "serviço de busca de carne e osso", é um indicador de sua natureza impiedosa.
Mas as campanhas de protesto via internet produziram resultados repetidamente. No caso do detento morto depois de uma surra, seus dos dirigentes foram punidos ou demitidos. O funcionário de Nanjing, dono de um relógio tão caro e vistoso, terminou demitido. A ação de extermínio de cachorros em Yunnan despertou críticas severas, até mesmo em jornais estatais.
A maioria desses casos, disse Xiao, gera dezenas ou centenas de milhares de menções em blogs e fóruns.
Mas o caso de Deng eclipsou a todos, com mais de quatro milhões de menções (e elas não param de surgir). A história dela parece ter comovido milhões de chineses que não só estão cansados da corrupção dos baixos funcionários do governo como defendem a castidade entre as mulheres jovens, uma causa que transcende qualquer posição política.
"Deng Yujiao serve como metáfora para uma pessoa que reage contra os funcionários públicos, e evidentemente esses mesmos funcionários são responsáveis por gastar o dinheiro dos contribuintes e se comportam de maneira abusiva com relação a eles, além de serem altamente corruptos", afirma Xiao. "O caso oferece praticamente um estereótipo da imagem que as autoridades governamentais têm na Internet, e é por isso que o caso ganhou tamanha dimensão".
A decisão de libertá-la, na terça-feira, divulgada com muito alarde pela mídia estatal, representou uma vitória para Deng e para aqueles que defenderam seu caso na internet. Mas a história talvez não se encerre com isso.
No mês passado, um grupo de jovens apareceu abruptamente no centro de Pequim, carregando nos ombros uma mulher que usava uma máscara e estava envolta por um manto branco. Eles a depositaram no chão e posicionaram cartazes em torno dela, e tiraram fotos.
Os cartazes afirmavam: "Qualquer um pode ser Deng Yujiao".
As fotos foram imediatamente postadas na internet.
Fonte: www.terra.com.br
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