Em visita a Brasília, em 1976, Takeo Fukuda, que logo se tornaria primeiro-ministro do Japão, disse a seus anfitriões: “após a crise do petróleo, tornou-se claro que os recursos são limitados. Este é um grande evento na história da humanidade. Seu país é uma potência no século 21, uma potência de recursos”[1]. Esse tipo de discurso tornou-se corriqueiro, passando a ser um protocolo da diplomacia de outros países em relação ao Brasil. Agora o discurso está se tornando realidade.
A expansão das exportações de commodities trouxe uma abundância de recursos ao Brasil, uma vez que é líder mundial nas exportações de minério de ferro, soja, carne bovina, aves, celulose e muitos outros. Guiado pela Embrapa, instituto de pesquisa agrícola do governo, o país passou a utilizar novas técnicas, transformando o cerrado em uma das regiões agrícolas mais produtivas do mundo.
No entanto, o mais rico dos recursos brasileiros deve ser a água. O Brasil é dotado de 13% do abastecimento mundial de água doce. Um membro do Instituto Fernand Braudel, residente em Pequim, Arthur Kroeber, editor do China Economic Quarterly, disse, em um de nossos seminários no mês passado, que a maior limitação no desenvolvimento a longo prazo da China é a água. Ele acrescentou que a China espera importar água do Brasil, sob a forma de produtos agrícolas. Enquanto isso, o Brasil terá que superar a escassez iminente de abastecimento de água para suas próprias cidades, devido à má gestão e falta de investimento público[2].
A idéia do Brasil como “potência de recursos” foi reforçada por uma nova fronteira na exploração petrolífera. Possivelmente uma das últimas fronteiras desse tipo de recurso natural. Em 2006, a Petrobras, em parceria com empresas privadas, começou a perfurar a cerca de 7.000 metros abaixo da superfície do Atlântico Sul, penetrando sedimentos antigos que se encontram abaixo de uma cama de sal de mais de 2.000 metros de espessura, para encontrar os restos de micróbios fossilizados que viveram 130 milhões anos atrás, quando dinossauros ainda vagueavam pelo interior do continente brasileiro. Presos sob estrutura maciça de sal, estes micróbios foram transformados pelo calor, pressão e tempo no hoje conhecido campo de Tupi. Já rebatizado de “Lula”, esse é um dos maiores campos do mundo em petróleo e gás, também considerado a maior descoberta das últimas décadas. Ao todo, dez campos gigantes foram anunciados até agora nas águas profundas da Bacia de Santos.
O Brasil é hoje o maior mercado do mundo para bens e serviços do setor petrolífero em alto mar. A Petrobras é a maior compradora individual. Alguns consultores acreditam que a Petrobrás poderá gastar US$ 1 trilhão nos próximos anos, em investimentos e custos operacionais do projeto em águas profundas[3], valor equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) de 2010, no maior empreendimento industrial da história do Brasil. Os gastos anuais de capital da Petrobrás nesta década já acumulam mais de US$ 45 bilhões. São muito mais do que o orçamento anual da Nasa nos anos 60, em dólares atualizados, quando os Estados Unidos se preparavam para enviar um homem à Lua[4]. Em cinco anos a estatal receberia 224 bilhões de dólares em investimento: o maior investimento do setor petrolífero nos dias atuais, que corresponde a 10% do investimento bruto em capital fixo do Brasil.
Riscos sempre foram inerentes à indústria petrolífera, tanto em termos físicos quanto financeiros. No entanto, isso pode ser mitigado quando as companhias conseguem a integração vertical, controlando o fluxo da produção, transportes, refino e comercialização. A Standard Oil Trust, de John D. Rockefeller, conseguiu a integração nos primeiros anos de existência do setor, assim como as maiores companhias – Exxon, Shell e algumas outras – até que a revolução da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), nos anos 70, reduziu o controle delas sobre as reservas.
Desde a sua criação em 1954, a Petrobras desenvolveu-se espetacularmente. Com suas descobertas desde a década de 70, a Petrobras agora se posiciona como uma das empresas petrolífera mais importantes e integradas do mundo, dominando seu grande mercado nacional, com apoio do governo e com acesso privilegiado às enormes reservas em águas profundas das bacias de Campos e Santos. No entanto, o sucesso comercial da exploração do pré-sal depende da superação de desafios relacionados à geologia, tecnologia, logística, segurança, finanças, política, recursos humanos e governança corporativa. Descrevo alguns desses desafios a seguir.
Desafio Político
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou essas descobertas de um “bilhete premiado”. A euforia do pré-sal produziu na classe política a ilusão de recursos ilimitados no horizonte. Ao propor uma legislação para criar um novo conjunto de leis para regular a exploração dessa riqueza, os ministros do governo Lula declararam que os riscos da exploração são extremamente baixos, com grande rentabilidade esperada. A sucessora de Lula, Dilma Rousseff, coordenou a elaboração da nova legislação enquanto presidia o conselho da Petrobras, antes de entrar na campanha eleitoral de 2010.
O intenso debate dessa nova proposta legal no Congresso centrou-se quase exclusivamente na distribuição de royalties entre estados e municípios, negligenciando a governança e as questões técnicas decorrentes da exploração e produção em águas profundas. Tudo se passava como se os recursos já estivessem disponíveis, e restasse apenas a tarefa de dividir o dinheiro.
Em seu discurso de posse como presidente, Dilma declarou que as descobertas do pré-sal seriam “o nosso passaporte para o futuro”, mas advertiu que “recusaremos o gasto apressado que reserva às futuras gerações apenas as dívidas e o desespero“. No entanto, o novo regime de partilha de produção fortifica um regime de capitalismo de Estado, sujeito a amplo poder discricionário do governo e pouca transparência. Reforçou-se o monopólio da Petrobras, reduzindo-se a concorrência de mercado e a diversificação de risco entre várias empresas. A nova legislação obriga a Petrobras a se tornar a operadora, com uma participação de 30%, no mínimo, de todas as fases de exploração na “estratégica” zona de águas profundas, abrangendo 149.000 km2. Tal obrigação pode ser um peso grande para uma empresa que já se encontra sobrecarregada em relação a recursos humanos e capacidade técnico-financeira.
Todas as decisões operacionais da Petrobras e das empresas privadas, incluindo contratação de pessoal, fornecedores e prestadores de serviços, serão decididas pelo comitê operacional, que terá metade de seus integrantes, incluindo o presidente, com direito a veto, indicado por uma nova empresa estatal, Petróleo Pré-Sal S/A, criada para fiscalizar as empresas da área do pré-sal. O espaço para intervenção política nas decisões técnicas é, portanto, muito grande.
Desafio Geológico
As camadas de sal na Bacia de Santos são muito espessas, chegando em alguns lugares a cinco mil metros. São plásticas, móveis e heterogêneas, contendo tipos diferentes de sal. Elas mudam de posição à medida que as perfurações são realizadas. Essas formações geológicas, com potencial de petróleo, se estendem mar adentro no Atlântico Sul em profundidades ainda maiores.
Estas formações não seriam acessíveis hoje sem os recentes desenvolvimentos das sondas de sísmica e no processamento de dados sísmicos. “Perfurar esses reservatórios de pré-sal implica desafios gigantescos”, observaram os engenheiros da Petrobrás durante a Offshore Technology Conference (OTC), em Houston[5]. “De todos esses desafios, o deslizamento do sal é o mais comum e mais difícil de administrar”. As camadas de sal são tão instáveis que podem engolir as brocas de perfuração e derrubar a carcaça que envolve o tubo de perfuração. “Os reservatórios de microcarbonatos ainda são pouco conhecidos”, disse um engenheiro veterano. “O petróleo sai do reservatório muito quente para chegar a um ambiente frio, com apenas 4º centígrados, e congela, virando uma cera, bloqueando o tubo, a menos que produtos químicos especiais sejam adicionados e esse tubo seja continuamente lubrificado.” A instabilidade das camadas de sal impede a perfuração horizontal para aumentar a recuperação dos reservatórios imediatamente abaixo do sal. Este é apenas um dos problemas envolvidos no desenvolvimento desses recursos.
Desafio de Engenharia e Logística
“Nas descobertas de pré-sal, temos dois tipos de problemas logísticos”, disse o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, numa entrevista: “O primeiro tem a ver com pessoas, e é um problema de distância. Na Bacia de Campos, atualmente nossa principal área de produção, transportamos em helicópteros mais de 60 mil pessoas entre a costa e as plataformas, que se situam a 150 km de distância. Mas os blocos de pré-sal na Bacia de Santos podem estar a uma distância de 300 quilômetros, longe demais para transportarmos tanta gente por helicóptero. Assim, precisamos, em primeiro lugar, reduzir o número de pessoas trabalhando nas plataformas, por meio de maior automação. Precisamos colocar plataformas a meio caminho entre a costa e as descobertas de pré-sal para servirem como centros logísticos e também como dormitórios, de modo que os trabalhadores que chegam por barcos possam ser distribuídos por helicópteros para as plataformas de produção, depois de passarem a noite no centro logística. O segundo problema é o suprimento de equipamentos para as operações em alto-mar. É preciso transportar produtos químicos, máquinas, eletricidade. Provavelmente teremos plataformas especiais para geração de eletricidade e outras para a mistura de substâncias química para os fluidos de perfuração.”[6]
Uma dificuldade para criar essas plataformas logísticas é garantir a estabilidade em mar agitado para permitir a atracação segura, como também a chegada e saída de navios e helicópteros. “Todo mundo acha que é óbvio, mas não é”, disse José Formigli, diretor de operações do pré-sal da Petrobrás. “E o preço? Já foi oferecido até um porta-aviões. Só que um porta-aviões se ficar parado tem o péssimo hábito de ficar virando de um lado para outro. Tem casco fininho porque precisa ter velocidade, e quando para, rola. E aí o helicóptero não pousa”.[7]
A estratégia da Petrobras pode ser a automação de operações sempre que isso for possível, reduzindo o número de trabalhadores no mar. Na Bacia de Santos, base para grandes frotas de helicópteros e navios de apoio, devem ocorrer mudanças na ecologia do litoral, com o porto de Santos se tornando um novo centro de gerenciamento das explorações em alto-mar. Guilherme Estrella, diretor de exploração e produção da Petrobrás, imagina 50 plataformas operando na área das descobertas iniciais, cada uma consumindo 100 megawatts de eletricidade. Isso totaliza 5 mil megawatts de capacidade gerada por 200 turbinas movidas a gás, o equivalente ao consumo de energia na região da Grande São Paulo, que tem aproximadamente 20 milhões de habitantes.
Desafio no suprimento industrial
Em 2009, a Petrobrás dominava o mercado mundial em sistemas de produção flutuantes em águas profundas (FPSOs), na maior parte superpetroleiros adaptados para receber, armazenar e descarregar petróleo e gás extraídos do leito marinho. A Petrobras opera 23 dos 49 FPSOs em uso no mundo atualmente, e 10 das 17 plataformas de produção semi-submersíveis usadas globalmente[8]. Em 2020, as operações da Petrobrás absorverão mais 58 plataformas de perfuração (que custam mais de US$ 600 milhões cada uma), 45 plataformas de produção adicionais e 300 superpetroleiros e barcos de apoio.
Nos próximos anos, a Petrobrás deverá encomendar 330 geradores à turbina, 610 mil válvulas, 10 mil quilômetros de cabos elétricos submarinos, 17 mil quilômetros de tubos flexíveis, 4,8 milhões de toneladas de aço, milhares de peças de complexos equipamentos submarinos. Tudo isso envolverá 68 milhões de homens-hora de engenharia e um bilhão de horas de trabalho para a construção e montagem[9].
Gabrielli alertou para “áreas críticas” ou “estrangulamento” na cadeia de abastecimento. “Uma delas é a de sondas. Uma sonda leva de três a quatro meses para perfurar poços a mais de 2 mil metros de profundidade da lâmina d’água. Uma FSPCO (sigla em inglês de plataforma de produção de petróleo) usa de 15 a 20 poços. Portanto, com uma sonda você leva quatro anos para montar um sistema de produção. É um elemento crítico e o Brasil não fabrica”. Também faltam “sistemas submersos, tubulações que ligam o fundo do mar à superfície (…). Hoje, temos a capacidade mundial praticamente contratada e vamos precisar de mais. Empresas inglesas e francesas estão vindo para o Brasil porque aqui é onde está a demanda. Precisamos avançar na área de grandes turbo-compressores, que são geradores flutuantes de eletricidade. É uma área que precisa crescer para atender à nossa demanda. Estamos falando de uma quantidade gigantesca de equipamentos (…)Cada sistema de produção produz entre 100 e 180 mil barris por dia. Então, se vamos produzir 4,5 milhões de barris por dia em 2020, precisamos ter 40, 41 sistemas desse. Cada sistema custa algo em torno de US$ 3 bilhões. Para funcionar, cada um precisa, em média, de cinco barcos de apoio. Estamos falando, portanto, de 200 barcos de apoio de todo tipo (rebocadores, chata, ‘anchor handling’, navio-bombeiro etc.). Para produzir 4 milhões de barris, vamos precisar de muitos petroleiros para transportar tudo isso. Se pensarmos em termos de Suezmax [petroleiro com capacidade de carga de 1,1 milhão de barris], vamos precisar diariamente em torno de 20 a 30 navios.”[10]
Desafio Financeiro
Em setembro de 2010, a Petrobras captou 70 bilhões de dólares com lançamento de ações. Deste, US$ 45 bilhões foram em dinheiro do governo, incluindo US$ 16 bilhões do seu fundo soberano e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), elevando a participação federal na Petrobras de 40% para 48%. O Ministério da Fazenda emitiu R$ 30 bilhões em títulos e os repassou ao BNDES, e este usou os recursos para comprar ações da Petrobras. Dos US$ 70 bilhões recebidos pela Petrobras, a título de capitalização, US$ 45 bilhões foram devolvidos ao Tesouro para pagar os direitos de exploração de um reservatório que, supostamente, contém 5 bilhões de barris de óleo. Estas transferências representam uma operação circular, que eleva o grau de estatização e de dependência da Petrobras em relação ao Tesouro. Alguns analistas dizem que a Petrobras pode ter de levantar ainda mais capital em poucos anos.
Conclusões
A Petrobras e o governo podem vencer todos esses desafios? Políticos, gestores e técnicos se deparam com esses riscos com uma coragem beirando a temeridade. As descobertas do pré-sal criaram o mito dos recursos ilimitados, que acabam gerando incentivos a gastos sem comedimento. O Brasil realmente precisa investir no desenvolvimento do pré-sal a esta velocidade e escala? Será que esses investimentos acelerados não criarão distorções na economia do país? Serão os investimentos em petróleo os mais importantes para o futuro do Brasil? Ou seriam preferíveis investimentos para corrigir enormes deficiências como no ensino público, portos, aeroportos, geração e transmissão de eletricidade, comunicações, saneamento básico e infra-estrutura de transporte?
Embora os recursos de petróleo do Brasil em águas profundas sejam um dos principais alvos na busca mundial por novas reservas, a Petrobras pode ter de trabalhar com mais cautela e tempo para superar as limitações na capacidade financeira, técnica e de recursos humanos. Terá sido correto estabelecer em lei a obrigatoriedade de participação da Petrobras em pelo menos 30% de todos os campos de exploração de petróleo? Isso não levará a empresa a uma exaustão financeira?
Fonte:
http://www.clickmacae.com.br/